Economia

MPF destaca importância da transição energética justa e inclusiva em seminário

Durante evento, realizado em Patos (PB), foram discutidos impactos na vida de agricultores e de comunidades quilombolas e tradicionais causados por projetos de energia renovável

Em palestra no Seminário Transição Energética Justa e Inclusiva para Construção de uma Sociedade do Bem Viver, o procurador da República José Godoy, representando o Ministério Público Federal (MPF), abordou a necessidade de se buscar parâmetros mais justos para a gestão do potencial energético renovável no país. O objetivo é garantir que as comunidades impactadas sejam ouvidas e tenham seus direitos respeitados durante o processo de instalação e funcionamento de usinas de energias renováveis em seus territórios.

O seminário, promovido pela Cáritas Brasileira Regional NE2, ocorreu nos dias 19, 20 e 21 de julho, na cidade de Patos, no sertão paraibano, e reuniu trabalhadores rurais, quilombolas, pesquisadores, integrantes dos sistemas de Justiça e representantes de órgãos e entidades envolvidos na questão. O representante do MPF participou do painel Atuação da Sociedade Civil e Sistema de Justiça Frente às Violações de Direitos nas Comunidades Atingidas por Megaprojetos de Geração de Energia. Também participaram desse painel o defensor federal Edson Andrade e o advogado Claudionor Pereira, representante do Centro de Ação Cultural (Centrac).

Os principais pontos abordados pelo membro do MPF foram: como a autonomia energética pode beneficiar agricultores e comunidades locais; o processo de desapossamento territorial das comunidades rurais diante de contratos de arrendamento de suas terras por longos períodos, de 30, 40 anos, que são renovados automaticamente pelas empresas; as distorções da política pública de produção energética, que beneficia as empresas enquanto mantém as comunidades na pobreza, dependentes de programas sociais de distribuição de renda; e a necessidade de realizar consulta prévia, livre e informada às comunidades em cujos territórios são implantadas usinas de energias renováveis.

Autonomia energética das comunidades – O procurador ponderou que os fortes ventos nas serras e a abundante luz solar, que poderiam proporcionar autonomia energética para as comunidades locais, produzem energia repassada para a concessionária, que a vende a preços elevados à população em cujas terras a energia elétrica é transformada. Ele ressaltou que essa situação é especialmente prejudicial aos agricultores, que enfrentam altos custos com energia e têm dificuldades para produzir. “Como é possível que esse processo inicie sem se pensar, em primeiro lugar, na autonomia energética de cada comunidade?”, questionou.

Contratos injustos – Outra questão abordada foi a forma de negociação das empresas que, sem se preocupar com o impacto nas comunidades locais, impõem contratos injustos que perpetuam a pobreza das comunidades. O procurador levantou as seguintes questões: como é que o governo realiza esse processo sem discutir com os grupos impactados qual a melhor forma de contratar essa riqueza, que é da comunidade? Por que o governo não demonstra sensibilidade para conceber um parâmetro de negociação justo? Em vez disso, concede isenção tributária às empresas e, sem sequer ter um estudo de impacto ambiental, autoriza os empreendimentos a irem às comunidades, assediá-las, gerar divisão, pois ninguém vê os contratos dos vizinhos porque são sigilosos.

“Ao invés de trazer o bem viver para essas populações, eles mandam contratos de adesão nos quais o agricultor vai receber 1%”, apontou Godoy, observando que tal medida é injusta e demonstra a incapacidade desses projetos promoverem economia verdadeiramente inclusiva. Também ressaltou que, posteriormente, o governo tem que recorrer a programas de distribuição de renda, como bolsa-renda e bolsa-família, por ser incapaz de transformar potenciais econômicos em melhoras da vida da população.

Perda de terras e recursos – O procurador ainda alertou para o cenário de desterritorialização no caso das comunidades, decorrente dos contratos de arrendamento por longos anos. “É uma questão de extrema gravidade, pois envolve a perda profunda do vínculo da comunidade com o território onde construiu suas raízes, porque fazer um contrato de arrendamento por 30 anos, no qual as empresas de energia podem renovar esse contrato quantas vezes quiser, o nome disso é perder o território”, disse.

José Godoy apontou que a chegada de empreendimentos desse tipo, que negociam com fazendeiros e desconsideram o diálogo com as comunidades, é um processo doloroso de testemunhar. “Infelizmente, mesmo sob o rótulo de ‘energia limpa’, esse processo tem sido contaminado pela falta de respeito e consideração com o lugar que chamamos de lar”, lamentou.

O procurador ainda ressaltou que é crucial que se busque forma mais justa e respeitosa de lidar com o desenvolvimento de empreendimentos, levando em conta o impacto profundo que eles têm nas vidas, nos laços afetivos e na sobrevivência das comunidades locais.

Repetidos casos de impactos econômicos e sociais do processo energético renovável sobre as comunidades tradicionais afetadas têm ocorrido, especialmente, em estados do Nordeste brasileiro. Uma série especial de reportagens investigativas sobre energia e crise climática, produzida pela Agência Pública em parceria com a Conectas Direitos Humanos, cita exemplos nos estados do Ceará, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Aposentadoria em risco – O defensor federal Edson Andrade apontou grave problema relacionado à aposentadoria dos agricultores familiares, que não são obrigados a contribuírem para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por serem classificados como segurados especiais. Para que obtenham a aposentadoria rural, os agricultores devem apresentar comprovação do trabalho realizado, cumprimento do período mínimo de atividade rural e atingimento da idade mínima.

Entretanto, alertou Edson Andrade, há uma preocupação quanto aos contratos de arrendamento com as empresas de produção energética, caso esses contratos sejam considerados ganhos de capital, o que pode levar à perda da condição de trabalhador rural para fins previdenciários. “Daqui a 40 anos, quando uma leva de pessoas que tinham a expectativa de se aposentar como segurados rurais, descobrirem que não poderão, haverá um problema gravíssimo e insuperável no nosso Nordeste”, lamentou.

Um real por hectare – Durante o painel, o advogado Claudionor Pereira, que atua com famílias agricultoras que já assinaram contratos com os empreendimentos energéticos, apontou dois graves impactos dos contratos de arrendamento de território com empresas pelos proprietários das terras: a perda da autonomia das famílias agricultoras sobre a gestão do uso do seu território e os valores extremamente baixos que as empregas pagam pelo uso da terra, chegando a R$ 1 mensal por hectare.

O advogado relatou que muitos agricultores e agricultoras se sentem lesados porque não foram esclarecidos que só recebe o percentual de 1 a 1,5% da energia que for transformada pela torre eólica a terra que tem aerogerador fixado. O mesmo não ocorre com as terras arrendadas que não têm as torres eólicas, mesmo que sejam utilizadas para a instalação da infraestrutura da usina, como estradas, subestação e cabos de transmissão para escoar a energia captada pelas pás.

“É uma desigualdade gritante que cria conflitos entre as vizinhanças, porque todos estarão impactados, todos estarão comprometidos com aquilo por toda a vida. Imagine um contrato de 40 anos sem o trabalhador poder explorar a sua terra porque ela está comprometida com aquele material e recebendo R$ 15 por mês pelo uso da sua terra pela empresa”, alertou o advogado.

Recomendações – Para buscar a aplicação de parâmetros mais justos na implementação da política pública de transição energética, os órgãos de controle na Paraíba, Ministérios Públicos Federal e Estadual e Defensorias Públicas Federal e Estadual emitiram recomendação para a Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema). Foi pedida a inclusão, no consentimento de licença ambiental, da realização de consulta prévia, livre e informada às comunidades, de forma que tenham participação nas decisões. Essa consulta deve ser feita por um órgão externo e não pela empresa interessada.

Em segundo lugar, a recomendação inclui a realização de estudo de impacto ambiental antes da Sudema liberar o empreendimento. Por último, recomendou-se a possibilidade de compensações sociais, e não apenas ambientais, para a comunidade cuja vida social venha a sofrer prejuízos. Esses três pontos da recomendação visam a garantir que as comunidades sejam ouvidas e que seus direitos sejam respeitados durante o processo de instalação de usinas de energia renovável em seus territórios.

Também foi feita recomendação ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que acompanhe e dê assistência às comunidades quilombolas e da reforma agrária, para garantir que sejam ouvidas e seus direitos sejam respeitados durante o processo de instalação de usinas de energia renovável. O Incra acatou a recomendação, informando que vai acompanhar as consultas prévias, livres e informadas nas comunidades e vai atuar para que os contratos não sejam negociados individualmente.

Assista ao seminário pelo YouTube

Assessoria de Comunicação
Ministério Público Federal na Paraíba